Katharina Welper

Da domesticidade cotidiana

Ivair Reinaldim

É comum associarmos o universo doméstico àquilo que nos é familiar e a certa noção de conforto e aconchego. Mas sabemos também que justamente no âmbito da casa, no mundo privado, ocorrem muitas das situações de violência física e psicológica a que inúmeras pessoas são submetidas em suas vidas. A intimidade decorrente de certa domesticidade – e cabe aqui pensarmos no sentido de domesticação e nos processos inerentes a essa condição – acaba sendo uma das vias em que o desconforto e o desamparo tornam-se presentes na existência humana.

A série Doméstico Perverso da artista Katharina Welper insere-se na investigação plástico-visual desse universo de questões. A partir de um conjunto de bordados de temas florais, decorrentes de padrões do leste europeu, realizados pela artista sobre lençóis e outras peças pertencentes a um antigo enxoval de uma enfermeira alemã (grafados com as iniciais E.B.), os trabalhos que constituem essa série parecem reconfigurar aspectos já bastante decodificados de obras contemporâneas que se alicerçam na prática do bordado: o universo feminino, a delicadeza e a ornamentação dos motivos, a domesticidade dos trabalhos manuais. Não que essas obras não possam ser compreendidas tendo como base essa chave de interpretação; no entanto, não se deixam limitar a ela.

Nesse sentido, a ideia de perversão presente no título da série cumpre duas funções essenciais. Por um lado, no plano discursivo, a ideia de perversão, mais que mera alusão a um conceito, é também ato. Não só representa, mas confere um senso político a esse trabalhos. Ou seja, referem-se de modo metafórico às pequenas e grandes perversões praticadas no âmbito da domesticidade, das situações vividas e nem sempre partilhadas para além da esfera do privado – seja este privado a literalidade da casa, do âmbito familiar mais imediato ou mesmo da subjetividade específica de cada pessoa. Essa domesticidade, então, torna-se lugar do segredo, do oculto, do não dito, do não familiar.

Por outro lado, a perversão visa corromper, alterar uma condição preexistente e ancorada em certa condição social de normalidade consensual. Ela representa o desvio às normas. Em termos práticos, o ato de bordar de Katharina Welper subverte certos mecanismos inerentes aos modos de fazer da técnica, ao se realizar não mais sobre uma superfície lisa. Embora a frontalidade do trabalho reforce a linearidade dos temas bordados pela artista, em um olhar mais atento sobre o tecido, é possível apreender as dobras e amassados, a reconfiguração de sua forma-base, como se a ação da artista quisesse evidenciar uma nova visualidade, sem apagar as marcas e histórias presentes naquele suporte. A presença de outro bordado, mais antigo, na mesma cor dos tecidos, reforça a diferenciação não só dos aspectos estruturais do novo bordado, mas também dos modos de sua execução.

Interessa-nos aqui pensar como o ato da artista relaciona-se intimamente com o material que elege como suporte. Os tecidos costurados e preparados para constituir o enxoval (lençóis, fronhas, toalhas, etc.), utilizados e desgastados durante seu uso ou mesmo pela passagem do tempo, marcados por memórias não conhecidas, tinham sua condição de existência ligada ao doméstico, ao privado, mas agora, ressignificados como trabalhos da artista, têm sua aparição subvertida, a partir de nova existência pública. A delicadeza e a destreza no bordar sugerem o encobrimento dessas dobras e marcas do tempo. Porém, mais do que esconder, acentuam a contradição inerente a esse processo.

Cabe aqui (re)pensar a domesticidade tanto desses tecidos ligados ao âmbito da casa quanto da prática do bordado – embora hoje haja uma condição de produção industrial que coabita com a persistência do gesto manual. O ato enquanto ação do fazer reforça o ato enquanto sentido de “dar a ver” o processo de tornar doméstico (domesticar). Esses trabalhos evidenciam a não possibilidade das aparências eliminarem as camadas e processos subjacentes, os conflitos e contradições que daí decorrem. Há, enfim, algo de comum – no sentido de comunidade – em sua singularidade.